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O século XX pode ficar na História como o século dos conflitos armados. Logo no seu início, o surgimento de novas potências no cenário mundial, como os Estados Unidos, e a expansão de seus interesses comerciais e financeiros aumentavam as possibilidades de confrontos de todo tipo. Ao mesmo tempo, antigos impérios decadentes, como a Rússia, pretendiam manter sua posição no sistema internacional. Para as jovens repúblicas da América Latina, pesava a ameaça representada pelos vizinhos norte-americanos.
As expectativas em relação a uma ordem internacional baseada no Direito cresciam na mesma proporção da disputa entre as potências pela conquista de mercados e territórios. Em muitos países, vários setores da opinião pública estavam mobilizados em favor da paz entre as nações, e por isso duas Conferências acabaram convocadas, ambas em Haia, na Holanda. Mas os dois encontros mostraram que os interesses dos Estados representados eram muitas vezes inconciliáveis. A construção de um sistema internacional e de um corpo de leis aceito por todos os países, objetivo de ambas as conferências, era um desafio quase impossível de ser superado, já que implicava sempre alguma perda de soberania dos Estados.
A Primeira Conferência da Paz fora convocada pelo czar Nicolau II em 1899 para discutir dois temas centrais: o armamentismo e formas pacíficas para contornar os conflitos entre os Estados. Para o controle de armas, houve acordo restringindo o uso de novos inventos, ficando proibidos o lançamento de explosivos por meio de balões e o emprego de gases asfixiantes e de explosivos que se estilhaçassem no corpo humano (poucos anos mais tarde, o horror da Primeira Guerra Mundial mostrou a ingenuidade dessas resoluções). Quanto aos conflitos entre nações, o grande avanço estava na criação de normas para a mediação e a arbitragem e no consenso em torno da proposta britânica de um Tribunal Permanente de Arbitragem. Era um passo significativo para a construção de um sistema internacional regido pelo Direito. Para esta Conferência, somente os países com representação diplomática no Império Russo haviam sido convidados. Da América Latina, só o México enviou delegados. O Brasil acabou declinando o convite por causa das recentes dificuldades financeiras do país e de algumas pendências de fronteira que faziam o governo não querer assumir compromissos com a arbitragem obrigatória.
Mesmo com os esforços da Primeira Conferência e o crescimento do movimento pela paz, que ganhava notoriedade entre intelectuais, imprensa e estadistas, a tensão entre as principais potências aumentou entre 1899 e 1907. A prova disso foi a guerra entre Rússia e Japão (1904-1905), causada pela disputa dos territórios da Coréia e da Manchúria e a influência sobre o continente asiático, e que terminou com a derrota do império czarista.
Foi nesse contexto que o governo norte-americano convocou a Segunda Conferência da Paz. Os Estados Unidos ganhavam importância no sistema internacional e, sob sua influência, todas as nações da América Latina foram convidadas a participar. Os olhares do mundo estavam voltados para o encontro, pois o avanço do armamentismo ampliava a expectativa em torno de suas decisões.
A Conferência começou no dia 15 de junho de 1907 com a presença de 44 nações, sendo 18 latino-americanas, entre elas o Brasil. Entre 1902 e 1912, a ativa política externa brasileira estava sob o comando do barão do Rio Branco, um homem preocupado com o lugar do país no novo sistema de nações que se delineava. A política internacional então defendida tinha três eixos fundamentais: a aproximação com os Estados Unidos, o maior importador de café e de outros produtos brasileiros, além de potência hemisférica cuja amizade poderia significar benefícios e proteção; a delimitação definitiva das fronteiras e a promoção incansável de uma imagem positiva do Brasil no exterior. No entanto, essa relação mais estreita com os Estados Unidos − útil tanto do ponto de vista da segurança quanto do ponto de vista do progresso material,não deveria ser de subordinação, e sim de respeito recíproco.
A escolha de Rui Barbosa como delegado plenipotenciário exprime a necessidade de afirmação do Brasil como nação civilizada. O senador reunia diversos atributos para isso: era representante legítimo da nação por seu cargo político, jurista erudito, expressava-se no idioma francês com perfeição e era experimentado advogado e rígido negociador. Existem controvérsias em relação à escolha dele em lugar de Joaquim Nabuco, então embaixador nos Estados Unidos e supostamente preferido do barão. O fato é que, formalmente, os dois foram convidados, mas Rui Barbosa seria o primeiro delegado. Nessas condições, Nabuco não aceitou o encargo.
A missão brasileira não seria simples. A perspectiva de Rio Branco era fazer o Brasil figurar como uma nação de prestígio, contando para isso com a relação estreita de cooperação estabelecida com os Estados Unidos. O ministro das Relações Exteriores incumbiu Nabuco de conseguir com o secretário de Estado norte-americano alguma honraria ou distinção para Rui Barbosa em Haia. Ele acabou nomeado presidente de honra da primeira comissão. Mas a posição imaginada para o Brasil nos projetos das potências estava muito aquém do que desejava Rio Branco. Inconformado, o barão instruía Rui Barbosa diariamente por telégrafo. Ao mesmo tempo, acionava suas legações em países estrangeiros, buscando apoio para as posições do Brasil, e investia na imprensa nacional e internacional, muitas vezes com matérias pagas. Todos os meios possíveis foram utilizados para garantir ao Brasil um lugar de prestígio no sistema internacional, mesmo que isso significasse ir de encontro à posição norte-americana.
Em 1907 não houve acordo para que se discutisse o desarmamento. Os debates ocorreram em torno de normas a serem seguidas na guerra, do direito dos países neutros e, sobretudo, da criação de um Tribunal de Presas e de um Tribunal de Arbitragem. A Conferência da Paz assumia enorme significado, pois seus objetivos eram estabelecer diretrizes para a mediação e a arbitragem de qualquer conflito. Só que os projetos apresentados na assembléia eram desconhecidos pela maioria dos países, sendo fruto de articulações políticas que antecediam os encontros, restritas às grandes potências.
Nos primeiros dias da Conferência, o Brasil ficou alinhado com as posições norte-americanas sobre a questão da captura da propriedade privada no mar em tempo de guerra. O Direito Internacional proibia o comércio entre os países em luta, não com terceiros, os chamados neutros. Mas os beligerantes podiam restringir o comércio dos neutros caso fosse considerado contrabando de guerra. Não havendo consenso em torno das propostas apresentadas, tornou-se necessária a criação de um Tribunal de Presas. O tema era primordial para a Grã-Bretanha e para as demais potências marítimas. De acordo com a interpretação de Rui Barbosa, a classificação das nações pela tonelagem dos navios, proposta pelos representantes ingleses, “era o modo indireto e diplomático de estabelecer a fórmula da exclusão, sem a pronunciar.” (Discurso no Senado, 19/10/1908). Seguindo instruções de Rio Branco, Rui Barbosa interpôs inúmeros argumentos contrários ao projeto britânico, mas ele acabou sendo aprovado, com Brasil e Turquia votando contra.
A outra grande proposta a ser discutida, sobre o Tribunal de Arbitragem, também defendia semelhante classificação dos países. Rio Branco havia buscado o apoio norte-americano contra a separação entre nações de primeira classe e outras de segunda, mas a “aliança” cultivada pelo chanceler não funcionou. A posição de Rui Barbosa se radicalizou, então, na defesa da igualdade jurídica dos Estados, o que permitiu ao Brasil consolidar apoios entre outras nações igualmente desprestigiadas.
Durante os debates sobre a constituição do Tribunal de Arbitragem, as potências pareciam bem articuladas. O esperado era que a assembléia ratificasse a instituição, consolidando o governo mundial pelas nações mais poderosas, incluindo os EUA, que ali estavam para firmar seu novo status de potência. Das repúblicas latino-americanas, esperava-se apenas que fossem testemunhas e legitimassem as decisões tomadas. A criação de um tribunal de caráter permanente foi aceita por consenso, mas a sua composição levou os trabalhos a um impasse. As grandes nações consideraram que deveria ser adotado critério semelhante ao estabelecido na criação da Corte de Presas. Mas a defesa da igualdade das soberanias feita por Rui Barbosa teve grande impacto entre os países latino-americanos. A chancelaria brasileira havia dedicado o melhor de seus esforços para liderar uma resistência contra a constituição de um sistema internacional dominado pelas grandes potências.
A aprovação da arbitragem obrigatória e a constituição do tribunal eram desejadas não só pelos pacifistas de plantão, mas também pelas grandes potências. Especialmente se o controle da corte estivesse nas mãos de seus juízes. Um grande passo era dado na busca de solução de conflitos por meios pacíficos. A posição de Rui Barbosa era extremamente difícil. Jornais britânicos e norte-americanos falavam de sua impertinência e ressaltavam que nações sem nenhuma importância estavam atrapalhando os avanços dos esforços pela paz. Mas o fato é que o representante brasileiro já expressava a voz de muitos. Não havendo consenso possível sobre a composição do tribunal, formou-se uma pequena comissão, conhecida como “os sete sábios”, entre os quais figurava o próprio Rui Barbosa. A comissão debateu o tema e concluiu que o princípio da igualdade deveria ser respeitado. A Conferência se encerrou em 18 de outubro de 1907 com uma solução honrosa para o impasse: a aprovação da proposta do delegado britânico para a criação do tribunal, cuja composição seria definida posteriormente por meio de novas negociações. O Tribunal de Arbitragem seria instalado somente em 1922, no contexto da consolidação da Liga das Nações.
Outro tema debatido na Conferência foi exposto pela representação argentina. Era a defesa da proibição do uso das armas para a cobrança de dívidas de Estados − que ficou conhecida como Doutrina Drago, nome de um dos delegados argentinos, já ministro de Relações Exteriores do país. Rui Barbosa tomou uma posição contrária, pois entendia que só havia uma garantia para manter a soberania de nações ainda em ascensão: a demonstração de sua estabilidade, de sua capacidade de honrar seus compromissos, coisa que o Brasil fazia. Havia também na posição brasileira o temor de que a Argentina consolidasse uma liderança entre os Estados latino-americanos. Na Conferência, ficou decidido que o uso da força nesses casos só seria legítimo após processo de arbitragem e descumprimento dos termos da decisão arbitral.
Ao salvaguardar os interesses do Brasil, Rui Barbosa acabou se destacando também como defensor da soberania dos países menores, merecendo aquela alcunha de “águia de Haia” que tinha sido criada para ele pelo barão do Rio Branco ainda em ocasião do embarque da delegação brasileira para a Europa. A arbitragem, segundo Rui, deveria ter o assentimento das partes envolvidas e dos juízes designados por elas. Um tribunal com caráter de corte de justiça significaria a substituição do consentimento pela coação e do Direito pela força. Para o representante brasileiro, somente no Direito era possível buscar a garantia da soberania das nações que não faziam parte do grupo seleto das potências mundiais. A atuação do Brasil na Conferência seguiu constantemente esta lógica, que pode ser resumida numa frase do discurso de Rui Barbosa sobre a composição do Tribunal de Arbitragem, em 17 de agosto de 1907: “A constituição do tribunal permanente de arbitramento é negócio de interesse universal, que não encara as nações segundo a sua importância relativa. Não se reconheceriam aí diferenças de interesse, a menos que fossem em favor dos débeis contra os fortes”.